2011/12/12

A anomalia da RDA

Recomendo: FROESE Paul//PFAFF Steven, Explaining a religious anomaly: a historical analysis of secularization in Eastern Germany em JOurnal for the scientific study of religion (2005) 44(4): 397-422.
Quando se tenta explicar sociologicamente a situação religiosa actual, recorre-se quase sempre a uma de duas teorias (ou grupos de teorias): a teoria da secularização e a teoria do mercado religioso.
A teoria da secularização (nas suas inúmeras variantes) é bastante conhecida. Em traços gerais e simplistas afirma que a modernidade, o desenvolvimento científico, o crescimento económico actuam como forças que retiram espaço aos fenómenos religiosos.
É uma teoria que entrou no senso comum e é habitual encontrar responsáveis eclesiais que a subscrevem acriticamente. [E que depois se encontram à rasca para desenhar uma pastoral minimamente criativa!]
Tem alguns limites. O primeiro é que não explica o crescimento religioso dos últimos 30 anos a nível mundial e a relevância que as religiões têm hoje. A segunda (e mais grave, a meu ver) é que entende as pessoas e os agentes religiosos como "sitting ducks", que se limitam a esperar sentados, sem nada fazer para reagir à erosão provocada pela modernização (essa malvada!).
Tendo a desconfiar de todos os modelos que não reconhecem agência (capacidade de actuação) às pessoas e aos grupos.
A teoria do mercado religioso é menos conhecida em Portugal. Mas vai sendo cada vez mais maioritária.
No fundo aplica o modelo económico da oferta e da procura aos processos religiosos. A tal erosão religiosa provocada pela secularização aparece como uma diminuição da procura. Mas, tal como no mercado, a oferta religiosa pode reconfigurar-se para corrigir essa situação. E mais: diz que a existência de uma oferta ampla e concorrencial acaba por fazer aumentar a procura.
Valia a pena aprofundar esta teoria, mas fica para outro post.
O estudo que quero comentar hoje é interessante porque evidencia os limites destas duas teorias.
Eles põem em evidência a situação dos estados da antiga RDA (Alemanha de Leste). São hoje o país com a mais alta taxa de ateísmo (25,4%) e a mais baixa taxa de pertença religiosa do mundo. E, segundo os autores, há aqui uma série de anomalias.
A teoria da secularização diria: "Cá está! Temos razão. Cresce o desenvolvimento, diminui a religião!" Errado. Isso não explica porque é que a RFA (ou hoje , os estados federados do que era a RFA) tem taxas de ateísmo muito mais baixas (7,3%) e taxas de pertença religiosa bem mais altas.
Entra a teoria do mercado religioso: "Ah, com o comunismo e tal e coisa, as condições do mercado religioso foram distorcidas mas agora com a liberdade a pertença religiosa vai aumentar".
Pois... isso verifica-se em todo o antigo bloco soviético (baixa o ateísmo, sobre a pertença religiosa... ao mesmo tempo que há mais liberdade, mais individualismo, mais desenvolvimento económico)... mas não na RDA. Estes valores da RDA são anormais, mesmo em comparação com os vizinhos ex-comunistas.
E, para complicar... já disse que a taxa de ateísmo cresce... depois da queda do muro de Berlim?
De 1990 para 1995 a % de ateísmo subiu dos 21% para os 25. Nos outros países ex-comunistas está sempre abaixo dos 10%. E tem vindo a baixar.
Os autores do estudo defendem que esta anomalia obriga a ser mais exigente nas explicações sociológicas. Não basta agarrar uma teoria one-fits-all.
Ao longo do artigo eles vão tentar explicar como a história civil, política, cultural, eclesial é necessária para explicar os resultados actuais.
Simplificando:
começam no século XIX, com a industrialização e com a urbanização massiva. Os conflitos sociais que se geram vão encontrar as igrejas do lado do status quo, opostos aos interesses de mais direitos para o proletariado. Podemos recordar Marx e o ópio do povo. Não esquecer que na Alemanha as igrejas têm uma forte ligação ao estado. Por outro lado, os territórios da RDA são dos mais industrializados da Alemanha. E onde a clivagem contra a religião se vai fazer mais sentir.
As igrejas (mais a luterana dominante do que a católica, mas...) além de não sintonizarem com os grandes desafios das massas trabalhadoras (desculpem a calão leninista) não investem em pessoal nas cidades. A atribuição de recursos pastorais não acompanha a rápida urbanização. Aqui em Portugal, a partir dos anos 70... ring a bell?
A somar a isto, de 1933 a 1945, com os nazis tens uma política de estado abertamente ateia e fortemente condicionadora das igrejas (mais dos luteranos do que dos católicos, mas...)
Depois, de 1945 e 1989 a RDA é dominada pelos soviéticos e desenvolve uma política anti-religiosa muito agressiva: educação, repressão, infiltração da hierarquia por elementos a STASI... mais uma vez a política das igrejas (mais os luteranos, uma vez mais... não esquecer que naquela região são/eram a confissão maioritária) é de apaziguamento... cristãos pelo socialismo etc e tal (os idiotas úteis de Lenine...) Durante o regime socialista as igrejas da RDA não se assumiram como uma alternativa social, cultural e política ao regime vigente.
Depois da unificação as coisas "pioram" ainda mais.
Aplicam-se as leis gerais e práticas do ocidente. Os cristãos que tinham conseguido resistir são sujeitos ao imposto religioso (coisa que nunca tinha acontecido durante o comunismo)... o que levou a muitos afastamentos. Muita gente sente que houve uma colonização ocidental. E as pessoas reagem a isso recusando tudo o que vem de Oeste. Também a religião.
Por outro lado, a unificação foi muito dura em termos laborais e financeiros. E as pessoas começaram a idealizar o passado mais simples da RDA. E começaram a apropriar-se de tradições e símbolos da RDA... como o ateísmo.
Bem... to cut a long story short...
QED que a história é complicada.

2011/12/10

um inquérito à pressão sff!

No ISSP 2008 a Q16 (v33) (Das seguintes frases, indique, por favor, aquela que traduz melhor a sua opinião sobre Deus) traz-me algumas dúvidas.
É suposto o respondente escolher uma e apenas uma das opções, entre as seguintes:
N
ão acredito em Deus 1
Não sei se Deus existe nem acredito que haja maneira de saber isso 2
Não acredito num Deus personificado, mas acredito na existência de
uma Força Suprema qualquer. 3
Há alturas em que acredito em Deus e alturas em que não acredito 4
Embora tenha dúvidas sinto que acredito em Deus 5
Sei que Deus existe e não tenho qualquer dúvida a esse respeito 6
Primeira questão: As várias opções são mutuamente exclusivas? Não haverá sobreposições possíveis.
Uma outra observação:
Em várias das opções “Deus” (o objecto em estudo) não é definido nem descrito (1, 2, 4, 5, 6). Mas a opção 3 já incide sobre o conteúdo do objecto (um Deus personificado versus “uma Força suprema qualquer”).
A acção inquirida ao respondente é se “acredita”. Não se avança com uma descrição do que significa “acreditar”. Pela análise dos outros verbos presentes, “acreditar” designa a forte probabilidade de existência do objecto “Deus”. O grau mínimo de “acreditar” é “Não acredito” e o grau máximo “Sei que Deus existe”. A matizar a distância entre estes dois extremos está a “dúvida. Na opção 5 a dúvida coexiste, embora em tensão com o acreditar. O acreditar aparece suportado pelo “sentir”; o que desloca a dúvida para o campo da racionalidade.
Pode ser interessante “testar” esta questão. Pedir aos participantes para se colocarem perante cada uma das opções numa escala Likert.
Aqui está o inquérito que vai permitir testar esta coisa. Por favor, passem aos vossos contactos.

2011/12/08

Fontes para a sociologia da religião em PT

Finalmente, comecei a escrevinhar algumas coisas para a tese.
Vou deixando aqui uns resumos.

Desde o final dos anos 80, os países europeus começaram a dispor de inquéritos regulares na área da sociologia da religião.

ESS

O European Social Survey (ESS) é feito cada dois anos em quase todos os países europeus e permite medir os indicadores religiosos mais fundamentais: a pertença a uma religião, uma eventual antiga pertença, um autoposicionamento de intensidade religiosa, a frequência aos actos de culto e a frequência da oração pessoal. Este inquérito aborda muitas temáticas. O que traz a vantagem de cruzar as questões religiosas com outras.
Sendo a última das grandes séries de sondagens a aparecer, houve um cuidado muito grande com os aspectos formais e metodolóogicos: “The objective of the ESS is to design, develop and run a conceptually well-anchored and methodologically bullet-proof study of changing social attitudes and values. Achieving these aims in a cross-national context requires 'optimal comparability' in the operationalisation of the study within all participating countries. This 'principle of equality or equivalence' applies to sample selection, translation of the questionnaire, and to all methods and processes. Above all, we must ensure that all procedures and outcomes are comprehensively documented in a standard way.
Este inquérito foi realizado em Portugal continental. A omissão dos dados das Ilhas pode alterar ligeiramente os valores médios nacionais. Usa respondentes a partir dos 15 anos.

EVS

O European Values Survey (EVS) é realizado cada 9 anos (1981, 1990, 1999, 2008). Portugal só não participou na primeira vaga (1981). Há um leque amplo de questões religiosas: a pertença religiosa, as frequências de culto e de oração, os ritos de passagem, a centralidade da fé, a adesão a alguns “dogmas” da fé…
Também este projecto não inclui dados das Ilhas. Usa respondentes a partir dos 18 anos de idade.

ISSP

O International Social Survey Programem (ISSP) realiza-se em cada ano. Portugal participa desde 1997. Em cada ano há um tema sociológico diferente. A temática religiosa apareceu em 1991 (Portugal não participou), em 1998 e em 2008. Usa respondentes com idades a partir dos 18 anos.

Apesar da disponibilidade destes dados, não há muitos estudos, feitos sobre eles, no contexto português.
Todas estas séries de estudos internacionais têm a vantagem de permitir a comparação entra países e a investigação sobre tendências e fenómenos de alcance internacional. O que gera um problema de contextualização. O inquérito deve ser idêntico em todas as diferentes versões que são aplicadas nos diferentes países. Para isso as questões postas devem ser gerais e descontextualizadas. Mormente no campo religioso, não podem estar dependentes das percepções e especificidades religiosas de cada país ou região. Mas, por outro lado, “les formes de religiosité et les conceptions du divin sont três différents selon les civilizations et on peine à bien mesurer les univers religieux sans tenir compte dês spécificités d’une region” . (BRÉCHON Pierre, La mesure de l'appartenance et de la non-appartenance dans les grandes enquêtes européennes, in Social Compass, 56 (2009) 2, 163-178) A consequência é um certo genericismo das questões; omitem-se as crenças e experiências mais específicas de cada religião em nome de uma vulgata religiosa, mais ou menos consensual entre os especialistas da sociologia da religião.
Mesmo com estas limitações pode ser iluminante determo-nos a estudar os dados disponibilizados e as concepções teóricas que estão por detrás deles.

2011/12/07

Emic vs Etic; qualitativo vs quantitativo

Estou a ler ARROYO MENÉNDEZ Millan, Religiosidade e valores em Portugal: comparação com a Espanha e a Europa católica (aqui)
O autor é um espanhol que se interessa por métodos em sociologia e pela religiosidade. No início deste artigo (onde trabalha com dados quantitativos) faz o reparo:
Apesar de ser a abordagem aqui empregue, a aproximação quantitativa não será a mais desejável.
Para poder optimizar a aproximação empírica aqui abordada são necessários estudos qualitativos através dos quais se possa contrastar e contextualizar o significado dos dados, variáveis e indicadores,quando se abordam temáticas tão complexas como as identificações, as crenças, os valores e as sensibilidades. Estes fenómenos são, no melhor dos casos, difíceis de apreender na sua complexidade a partir de indicadores concretos — que simplificarão necessariamente a realidade abordada. No entanto, os dados de inquérito susceptíveis de extrapolações inéditas são
fáceis de encontrar e o acesso às bases de dados originais também não parece ser complicado, enquanto o acesso a materiais empíricos qualitativos é praticamente impossível, em primeiro lugar, pela grande escassez de estudos desta natureza existentes e, em segundo, porque, quando efectivamente existem, não têm o hábito de facilitar os materiais intermédios (gravações
de áudio, transcrições, etc.) aos investigadores. Seguidamente, apresentaremos uma descrição dos dados estatísticos reunidos e, numa tentativa de ir mais além de uma visão meramente descritiva, ofereceremos interpretações e explicações dos mesmos — cuja confirmação depende da sua contrastação com outras abordagens qualitativas.